Parte 2
Lucy gritou e gesticulou, mas não
houve tempo. Quando perceberam, os zumbis já cercavam a família e o irmão de
Lucy investiu contra o primeiro. Desesperada, Lucy assistia a luta vã de pai e
filho, que tentavam proteger o corpo já inerte da mãe, estendido ao lado do
carro. Não foi menos assustada que a garota ouviu os latidos de Tampo, que
conseguira se soltar da coleira para defender a família em apuros. O vira-latas
não teve tempo sequer de morder a perna do errante mais próximo aos donos. Foi
atacado por três zumbis que não se importavam com os ganidos do animal. Lucy
tinha o rosto machucado pelas unhas que, tamanho nervosismo, cravou enquanto
chorava e gritava pela família. Quando percebeu que o pai e o irmão, assim como
o cachorro e a mãe, não teriam salvação, a garota se encolheu no canto do
aposento, com as mãos tapando os ouvidos com muita força. Ainda assim, podia
ouvir os gemidos dos zumbis que destroçavam sua família, os gritos do pai e do
irmão, que aos poucos iam se calando, mas chegavam abafados aos ouvidos da
garota. Lucy chorou e pediu a Deus para que tudo acabasse rápido. As lágrimas
escorreram em seu rosto por várias horas, até que a garota caísse no sono, ali
mesmo, encolhida no canto do quarto, com as mãos nos ouvidos.
Quando acordou, Lucy não tinha
ideia de quanto tempo havia passado. Por um milésimo de segundo, pensou que
havia tido um pesadelo, mas logo percebeu que não havia sonhado: o silêncio
sepulcral da casa escura era a prova de que a família inteira jazia morta em
frente ao prédio. Já era noite, e nenhum som vinha do lado de fora - nem os
gemidos dos mortos-vivos, nem seu arrastar de pés. Lucy fez força para vencer o
desânimo e se levantou. Apesar do breu, ainda podia distinguir os móveis do
quarto, com sua cama desajeitada, as roupas espalhadas, o computador desligado,
os pôsteres de artistas que gostava e a coleção de livros do Harry Potter,
alinhados na prateleira. Caminhou até a porta para certificar-se de que o irmão
realmente a deixara trancada. Era uma noite fria e a brisa do vento trazia um
leve cheiro de podridão. Evitando olhar para fora, Lucy fechou a janela que
havia lhe servido de camarote para o terrível espetáculo daquele dia. A garota
caminhou até a cama e se sentou, tentando não pensar na dor opressora que
sentia no peito. Fez cara de choro ao pensar na morte dos pais e do irmão, mas
já não tinha lágrimas e a cabeça doeu com o esforço. Limpou o nariz ressecado
na manga da blusa e esfregou os olhos castanhos, que ardiam. Passou as mãos
pelos cabelos castanhos e lisos, desalinhados, levando as mechas para detrás
das orelhas. Deitou-se devagar e voltou a dormir.
Lucy
acordou desconfortável com o calor do dia ensolarado que entrava pelos vidros
da janela. Um pouco atordoada pelo sono recém desperto, se sentou à beira da
cama e percebeu que estava com a garganta seca, lábios rachados, olhos inchados
e com fome. Ajeitou os cabelos, calçou o par de Converse que deixava embaixo da
cama e foi novamente verificar a porta trancada. Parou por um momento, com a
cabeça encostada na madeira fria, tentando pensar em uma solução. Ela precisava
sair dali, ir para a cozinha, beber água, comer alguma coisa, talvez tomar um
banho, e depois pensar no que fazer. Olhou em volta, por todo o quarto,
procurando algo que lhe ajudasse a arrombar a fechadura. Encontrou o removedor
de grampos, um objeto de metal que usava para remover os grampos dos trabalhos
de escola e organizar tudo por pastas coloridas. Voltou à porta e ficou olhando
para a fechadura, tentando imaginar um jeito de abri-la a força. Enfiou a ponta
do removedor de grampos no buraco da chave, girou, balançou, mas tudo o que
conseguiu foi barulho e uma dorzinha no pulso, que sempre lhe voltava, por
conta da tendinite. Por fim, achou melhor tentar arrancar as dobradiças,
desparafusando com o removedor e empurrando a folha da porta. Lucy viu que não
teria como desparafusar, uma vez que a porta estava fechada e tudo o que ficava
exposto das dobradiças era justamente a junção entre as peças. Com raiva,
cravou o removedor entre o metal das dobradiças, como se desse uma facada. Um
estalo fez com que ela voltasse a prestar atenção no trabalho. O removedor de
grampos ficou preso entre as peças da dobradiça e a madeira do batente, que
abriu uma pequena rachadura. Lucy olhou em volta atônita e escolheu o livro
mais grosso, Harry Potter e o Cálice de Fogo, uma edição especial de capa dura
que havia comprado pela internet, para usar como martelo. O removedor de
grampos continuava preso ao batente e Lucy não hesitou: com um movimento
rápido, bateu com o livro na ponta da ferramenta, que bambeou e se afundou um
pouco mais na madeira, com outro estalido. Ela ajeitou o removedor, respirou, e
repetiu o movimento. Desta vez a pancada fez com que o objeto se soltasse, mas
um dos parafusos da dobradiça parecia estar completamente solto. Lucy ajeitou
novamente o removedor entre a dobradiça e o batente e efetuou todo o trabalho.
Quando soltou o último parafuso e viu a porta bambear, a garota olhou com
tristeza para o livro em frangalhos e o jogou em cima da cama. Afastou-se um
pouco e impulsionou o corpo contra a porta, que rangeu, estalou, fez um
“creque” e, finalmente, caiu para frente, deixando farpas da madeira
estilhaçada no batente e onde ficava a fechadura.
...
Continua
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